O crime da moda

terça-feira, 3 de janeiro de 2012

O atropelamento ou a colisão é a

gota d’água , o desfecho natural

determinado por fatores

sociológicos e não apenas

individuais

Volta e meia a sociedade brasileira

vive um modismo penal. Já foi moda

falar em penas mais duras para

falsificação de remédios,

redundando num crime que prevê

uma das penas mais altas do

Código Penal; houve épocas em que

se popularizaram propostas de

endurecimento de penas para

melhor punir o sequestro

relâmpago.

O crime da moda agora é a

embriaguez ao volante. Não que

referida conduta não precise ser

combatida e ter a atenção do Direito

Penal, mas é como se, com uma

mudança milagrosa da lei penal

fosse possível extirpar dos trópicos

este mal que ameaça a sociedade

brasileira.

As trágicas mortes recentes no

trânsito das grandes cidades não

são moda; moda é falar destes

acontecimentos como se fossem

crimes hediondos. Paremos para

pensar um pouco sobre a

sociedade que construímos nos

últimos anos, sobretudo nas

grandes cidades brasileiras. A vida

nesses grandes centros resume-se à

conjugação de alguns fatores, como

expansão demográfica, boom

imobiliário selvagem sem qualquer

tipo de planejamento urbanístico,

distanciando cada vez mais as

residências dos centros de serviço,

como bares e restaurantes, varridos

do mapa em segundos para darem

lugar a novos empreendimentos;

um tráfego extremamente

agressivo, suficiente para matar de

enfarte ou adoecer por estresse

qualquer motorista contumaz;

incentivo total à indústria

automobilística em detrimento dos

investimentos necessários nos

meios de transporte público; espaço

dedicado ao pedestre cada vez mais

precário.

Por fim, uma cultura do alcoolismo,

incentivada todos os dias pela

grande mídia. O atropelamento ou a

colisão é a gota d’água , o desfecho

natural determinado por fatores

sociológicos e não apenas

individuais, embora crucificar este

ou aquele motorista específico ajude

a esconder debaixo do tapete

questões muito mais sérias e

intrincadas, impossíveis de se

resolver do dia para a noite como

exige o apelo popular. Disto se

depreende uma característica muito

marcante do sistema neoliberal

brasileiro, que gosta de se ufanar de

conseguir desenvolvimento

econômico à custa de uma mínima

intervenção estatal, mas que não

hesita em pedir socorro à forma

mais invasiva de intervenção do

Estado na vida do indivíduo — a

prisão — quando a sociedade por si

só dá mostras de não ter

conseguido organizar-se de modo a

garantir uma qualidade de vida

digna para os seus cidadãos.

Podemos aumentar a pena da

embriaguez ao volante, mas

dificilmente os jovens deixarão de

beber antes de pegar o carro. O

pior é que a maioria, jovens ou não,

fará isto sem colocar em risco a vida

dos outros, mas provavelmente será

penalizada pelos erros dos que

realmente expõem a perigo a

integridade física de terceiros.

Quanto aos problemas crônicos que

afligem nossa cidade todo dia, com

ou sem o álcool, tudo permanecerá

como está, seguindo a máxima

lampedusiana de que as coisas

precisam mudar para que tudo

permaneça do mesmo jeito.

FÁBIO TOFIC SIMANTOB -Globo

Online


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