O crime da moda
O atropelamento ou a colisão é a
gota d’água , o desfecho natural
determinado por fatores
sociológicos e não apenas
individuais
Volta e meia a sociedade brasileira
vive um modismo penal. Já foi moda
falar em penas mais duras para
falsificação de remédios,
redundando num crime que prevê
uma das penas mais altas do
Código Penal; houve épocas em que
se popularizaram propostas de
endurecimento de penas para
melhor punir o sequestro
relâmpago.
O crime da moda agora é a
embriaguez ao volante. Não que
referida conduta não precise ser
combatida e ter a atenção do Direito
Penal, mas é como se, com uma
mudança milagrosa da lei penal
fosse possível extirpar dos trópicos
este mal que ameaça a sociedade
brasileira.
As trágicas mortes recentes no
trânsito das grandes cidades não
são moda; moda é falar destes
acontecimentos como se fossem
crimes hediondos. Paremos para
pensar um pouco sobre a
sociedade que construímos nos
últimos anos, sobretudo nas
grandes cidades brasileiras. A vida
nesses grandes centros resume-se à
conjugação de alguns fatores, como
expansão demográfica, boom
imobiliário selvagem sem qualquer
tipo de planejamento urbanístico,
distanciando cada vez mais as
residências dos centros de serviço,
como bares e restaurantes, varridos
do mapa em segundos para darem
lugar a novos empreendimentos;
um tráfego extremamente
agressivo, suficiente para matar de
enfarte ou adoecer por estresse
qualquer motorista contumaz;
incentivo total à indústria
automobilística em detrimento dos
investimentos necessários nos
meios de transporte público; espaço
dedicado ao pedestre cada vez mais
precário.
Por fim, uma cultura do alcoolismo,
incentivada todos os dias pela
grande mídia. O atropelamento ou a
colisão é a gota d’água , o desfecho
natural determinado por fatores
sociológicos e não apenas
individuais, embora crucificar este
ou aquele motorista específico ajude
a esconder debaixo do tapete
questões muito mais sérias e
intrincadas, impossíveis de se
resolver do dia para a noite como
exige o apelo popular. Disto se
depreende uma característica muito
marcante do sistema neoliberal
brasileiro, que gosta de se ufanar de
conseguir desenvolvimento
econômico à custa de uma mínima
intervenção estatal, mas que não
hesita em pedir socorro à forma
mais invasiva de intervenção do
Estado na vida do indivíduo — a
prisão — quando a sociedade por si
só dá mostras de não ter
conseguido organizar-se de modo a
garantir uma qualidade de vida
digna para os seus cidadãos.
Podemos aumentar a pena da
embriaguez ao volante, mas
dificilmente os jovens deixarão de
beber antes de pegar o carro. O
pior é que a maioria, jovens ou não,
fará isto sem colocar em risco a vida
dos outros, mas provavelmente será
penalizada pelos erros dos que
realmente expõem a perigo a
integridade física de terceiros.
Quanto aos problemas crônicos que
afligem nossa cidade todo dia, com
ou sem o álcool, tudo permanecerá
como está, seguindo a máxima
lampedusiana de que as coisas
precisam mudar para que tudo
permaneça do mesmo jeito.
FÁBIO TOFIC SIMANTOB -Globo
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